Durante um (longo) período da minha vida eu vivi buscando atender expectativas sociais que eu acreditava serem as minhas metas de vida. Eu estudaria, trabalharia, me casaria, teria filhos, e netos e envelheceria ao lado do meu grande amor. Isto é que eu ouvia dizer sobre. Nunca gostei muito desta ideia, de ter algumas partes deste “sucesso” condicionadas a outras, nunca via muita lógica para a necessidade de ter um marido para ter um filho, mas ok se o “certo” era comprar o combo, eu seguiria por este caminho.
No meio da minha estrada eu me apaixonei por inúmeras pessoas, me apaixonava todos os dias, às vezes pela mesma pessoa, às vezes por pessoas diferentes, às vezes por mais de uma ao mesmo tempo, me apaixonava por sorrisos, por ideias, por cheiros, por toques, mas acima de todas as coisas me apaixonava por quem me fazia rir.
Tive relacionamentos com gente bacana, vivi um poliamor que não deu certo, provavelmente por desconhecermos o que era o poliamor (e se vocês , pessoas que eu amei demais estiverem lendo isto saibam que foi foda e especial apesar de tudo) , passei pelas mãos de gente violenta, dessas que agridem na base da porrada mesmo, que ameaçam, que estupram. E desde o cara bacana até na relação violenta eu acreditei veementemente de que as coisas aconteciam da maneira como tinham que acontecer e que se alguma coisa deu errado, se o relacionamento nadou em lama e terminou, se eu apanhei, se as pessoas gritaram comigo, era porque obviamente a culpa era minha, eu era uma “pessoa difícil”. Ou eu havia irritado estas pessoas, ou eu era cansativa, feia demais, gorda demais, negra demais, ou eu havia provocado e na minha mente a vida era assim com todo mundo, ou com toda mulher. Na minha ideia de amor, para que tudo desse certo bastava descobrir tudo que o objeto do meu desejo gostava ou sonhava e fazer o possível para atender estas expectativas daquele ser. E estava tudo bem porque embora esta mensagem não tenha sido passada diretamente de dentro da minha casa, isto era o que eu lia nos livros preferidos, o que eu via na Tv, via nos filmes, nas músicas mais tocadas no rádio.
Eis que um dia eu decidi ficar pra valer com alguém, finalmente um relacionamento sem gritos, sem abusos, sem estresse, e onde eu sorria absolutamente todos os dias da minha vida. Pensei agora sim, é aqui que eu quero ficar, eu estava apaixonada e feliz, mas como a vida não tem relação nenhuma com a parte feliz dos contos de fada, tanto eu quanto ele, fomos arrastados para armadilha dos estereótipos de gênero.
“Mulheres são delicadas”
“Mulheres são o sexo frágil”
“Um homem deve ser o provedor do lar e da família”
“Homens são fortes”
“Homens não choram”
No meu novo lar trabalhar era inconcebível, afinal na casa existia um provedor. Estudar para que? Onde eu achava que usaria o meu diploma? O que eu fazia o dia todo em casa e ainda atrasava a janta? Este era o mote das nossas conversas, claro que não era só isso, mas esta era a base daquele relacionamento e eu achava tudo àquilo absolutamente NORMAL. Era aquilo que se esperava dele, e eu precisava atingir aquilo que se esperava de mim. Eu estava ali para servir e obedecer, e havia sido tratada desta forma a vida inteira sem me atentar para a questão, sem associar meu comportamento a tudo o que haviam me ensinado na escola sobre o que era uma família, sobre qual era o lugar do negro, o lugar da mulher. E então veio o filho, veio a cobrança para que nascesse junto com o bebê uma mãe sabe tudo e que tinha que dar conta de tudo e com excelência, afinal mulheres nasceram para isso. E nesta vibe criamos um abismo entre nós, nos ferimos, nos cansamos, mas tecnicamente atingimos todos os objetivos do jogo hétero-cis-normativo. Por fim a relação acabou com uma única frase que resumia tudo o que eu tinha vivido até aquele ponto na minha vida - “Aqui dentro da minha casa você não tem direito a nada”. Com a minha falta de direitos externada ficou claro pra mim que aquilo tudo que havia sido construído não eram nem de longe as minhas metas de vida
Quanto daquilo que vivemos é fruto daquilo que a sociedade nos impõe como o certo? Penso no que me impediu por 27 anos de me rebelar contra o sistema e descobri as coisas que possivelmente eram as minhas aspirações reais. Quantas coisas os meus parceiros fizeram porque “é assim que é”, quanto foi feito “em nome da honra”, para marcar território, para impor respeito.
E o tempo passou eu tive outras tantas relações e percebi que ainda incorria nos mesmos clichês, eu os enxergava agora, mas como mudar? E se eu mudasse como fazer o outro mudar?
Descobri que estereótipos de gênero se aplicam a todos os tipos de relações, até mesmo nas relações lésbicas, da qual posso falar com propriedade, grande parte destas relações ainda é a reprodução de uma ideia e um ideal hétero-cis-normativo que ainda inclui conceitos como a “masculina” e a “feminina” e pauta sua convivência naquilo que uma pode e a outra não, em quem regrará sua roupa, em quem lava a louça, em quem abre potes e troca pneus, quem é ativa e quem é passiva, quem pode e quem não pode chorar.
Sexismo é um termo que se refere ao conjunto de ações e ideias que privilegiam determinado gênero ou orientação sexual em detrimento de outro gênero (ou orientação sexual). Embora seja constantemente usado como sinônimo de machismo é na verdade um hiperônimo(algo que designa uma classe toda, agrupando várias sub-classes) deste, já que é possível identificar diversas posturas e ideias sexistas (muitas delas bastante disseminadas) que privilegiam um gênero em detrimento a outro. De maneira geral, o termo é usado como exclusão ou rebaixamento do gênero feminino.
Sexismo internalizado é definido como a crença involuntária por meninas e mulheres de que as mentiras, estereótipos e mitos, repetidos a exaustão em uma sociedade machista, são verdadeiras. Meninas e mulheres, meninos e homens vêem às mensagens sexistas (mentiras e estereótipos) sobre as mulheres em toda a sua vida útil. Eles ouvem que as mulheres são estúpidas, fracas, passivas, manipuladoras, sem capacidade para atividades intelectuais ou de liderança. Em contrapartida cabe ao homem ser forte, ativo, racional, líder.
Há duas conseqüências lógicas e previsíveis de uma vida inteira de tais mensagens. Primeiro, meninos / homens vão crescer a acreditando em muitas destas mensagens, e tratarão as mulheres de acordo. Eles serão completamente doutrinados para o seu papel no sexismo, protegendo seu privilégio masculino por conspirar com a perpetuação do sexismo.
Mas há uma segunda consequência lógica – as mesmas mensagens também ficarão com as meninas e as mulheres, resultando neste sexismo internalizado. Mulheres e meninas são ensinadas a agir conforme estas mentiras e estereótipos, duvidando de si mesmas e permitindo que este sistema sexista se perpetue.
Para que o sistema sexista seja mantido e passado para a próxima geração, todos nós devemos acreditar nas mensagens (mentiras e estereótipos) em algum grau, e conspirar com sexismo através da realização de nossos papéis atribuídos. Para quebrar com esta base sistemática precisamos nos livrar destes estereótipos de gênero, impedir que os mesmos sejam reproduzidos e garantir assim que o suposto direito adquirido a violência e a opressão seja parcialmente anulado.
Neste final de semana a ONU lançou nos estádios de futebol a iniciativa “O Valente não é Violento”, que faz parte da campanha do Secretário-Geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, UNA-SE Pelo Fim da Violência Contra as Mulheres, é coordenada pela ONU Mulheres e conta com o apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República. Para marcar o lançamento da iniciativa, seis times de futebol entraram em campo, nos jogos da última rodada do Campeonato Brasileiro, levando faixas com os dizeres: O Valente Não É Violento Com As Mulheres. Entre eles, Vasco e Atlético Paranaense.
Não preciso nem dizer que a mensagem não foi assimilada por completo por quem estava nas arquibancadas de Vasco X Atlético Paranaense. Por uma hora e meia homens se digladiaram brutalmente para defender sua honra, seu ponto de vista.
O objetivo desta iniciativa é estimular a mudança de atitudes e comportamentos machistas, enfatizando a responsabilidade que os homens devem assumir na eliminação da violência contra as mulheres e meninas, e deste modo possibilitar a juventude da América Latina e do Caribe uma vida livre da violência de gênero.
imagens da campanha "O Valente não é Violento"
Violência e opressão nada tem a ver com masculinidade, virilidade, valentia ou coragem. Ainda é preciso avançar muito neste aspecto.
Dividir as responsabilidades num lar não te torna mais fraco, intimidar uma mulher não fará com que ela o ame, bater nos seus filhos não fará com que eles o respeitem e violência psicológica fere tanto quanto um soco ou as vezes um tiro.
Que esta campanha atinja mais homens, que nossos meninos possam crescer com outros conceitos e que mais mulheres consigam brigar contra os estereótipos que trazemos sobre nossos ombros.
Hoje é 10 de dezembro de 2013, Dia Internacional dos Direitos Humanos e último dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres convocada pela ONU. Eu ainda estou no caminho , ainda vou amar muito, me apaixonar inúmeras outras vezes. Abraçada por outras mulheres em luta descobri que lugar de mulher é onde ela quiser. Aprendi recentemente que é preciso amar sem posse, aprendi (não tão recentemente) que eu sei e que eu posso trocar pneu, abrir pote, dormir com quem e quantos eu desejar, beber até cair, reformar uma casa e colocar azulejo, criar meu filho muito bem, estar sozinha, aprendi a responder na mesma altura, aprendi a me defender, aprendi que violência também se disfarça de outros nomes e precisa ser denunciada e combatida sempre e que nenhum estereótipo pode me deter pois já não sou mais regrada por eles.
* Este post faz parte da blogagem coletiva convocada pela ONU Mulheres para marcar o Dia Internacional dos Direitos Humanos e o último dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres.
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