quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Tornando-se preta num segundo nascimento.

É estranho como podemos passar uma vida inteira sem nos enxergarmos como realmente somos. Eu por exemplo tenho 25 anos, mas apenas há 5 anos enxergo-me enquanto preta. Como pode (perguntarão alguns) alguém não perceber que nasceu com a pela escura, com o cabelo crespo, com o nariz largo, enfim... Como pode alguém não perceber que nasceu preto ou preta? E eu respondo: isso é totalmente aceitável nessa sociedade racista.
Cresci num mundo de apresentadoras infantis loiras, de barbies (magras, de pele clara, olhos azuis, cabelos longos e lisos), de “contos de fadas” sem nenhuma princesa preta. Desenhos, revista, livros, televisão...Tudo, mostrando-me o quanto era ruim nascer preto ou preta.
Ao entrar na escola percebi a dor cruel do racismo. Só que é preto ou preta vai entender o significado de um apelido na escola (negrinha fedida, cabelo Bombril, macaca, safada...). Saber que você é xingada por conta da cor da sua pele. No começo buscamos o auxilio da professora. E essa, muitas vezes não julga o racismo sofrido por uma criança algo relevante. Com isso percebemos, decepcionados, que: “Não importa em quantos pedaços seu coração tenha se partido, o mundo não parará para que você o concerte”. E dessa forma aprendemos que estamos sozinhos/as nessa luta e que precisaremos criar estratégias de defesa para sobreviver nessa sociedade que nos exclui. Aprendemos a nos tornarmos invisíveis: Sempre calados, de cabeça baixa, olhos para o chão, o corpo numa tentativa desesperadora de entrar em sim mesmo encolhe-se, encurva-se, tornar-se nosso refugio e também nosso castigo.
Raiva: da pele escura, do cabelo crespo, do nariz, da boca, do quadril largo, das características herdadas dos nossos pais. Por que nascer desse jeito? Os racistas fazem-nos acreditar que o problema esta em nós, na nossa família, nos iguais. Passamos a nos odiar, odiar que amamos e todos/as aqueles/as que são parecidos/as com a gente. Durante muito tempo odiei as pessoas erradas. Olhava para minha mãe e sentia raiva dela, por ter saído como ela. Queria ter nascido uma parda como são consideradas as minhas irmãs (afinal, antes um branco meio sujo do que do que preto ou preta: sujo, encardido, triste, perigoso, assustador, nefasto, escravo, individuo da raça negra...). Queria os olhos azuis ou verdes, queria o cabelo liso ou ondulado, queria a pele branca, rosada ou bronzeada do sol, o nariz fino e arrebitado, queria estar no padrão, se olhada e admirada e não tratada como pedaço de carne, como aquela que é boa como amante (afinal, as negras são historicamente boas de cama, boas amantes, desde da época da escravidão quando eram estupradas pelos seus senhores).
Quando me olhava no espelho não me via como me vejo hoje. Enxergava-me como gostaria de ser: de um branco meio sujo, uma morena não tão clara, morena escura talvez!? O cabelo alisado me ajudava no processo de alienação. Afinal, pelo menos os meus cabelos estariam no padrão.
Dessa forma vamos mutilando nosso corpo, nossa alma, nosso psicológico. Assimilando cada vez mais as características do opressor, a política do opressor, a cultura do opressor... Um desejo de quem sabe um dia torna-se a copia do opressor.
A dor do racismo é uma ferida que só dói quando a tocamos. Por isso é fácil entender por que muitos preferem não falar sobre o que sofre. Como é dolorido “o despertar”. Sair dessa alienação é passar pelo processo do parto, nascer novamente. E foi isso que aconteceu comigo. Nasci: Agora sim uma mulher preta! E como foi estranho me olhar no espelho pela primeira vez, sem o véu da alienação... Uma imagem estranha refletia no espelho. Senti-me como um cego a enxergar pela primeira vez: - Então eu sou assim?
Não é simples passar a aceitar-se. Escurecer sua pele dizendo: “Não sou morena, sou preta”, livra-se da química tão impregnada no seu cabelo, adotar um black, uma trança, o cabelo natural de uma mulher preta. Estar preparada para os olhares, para os comentários: “Nossa porque você não alisa esse cabelo?”, “Eu não teria essa coragem de deixar meu cabelo assim”, “Preta? Mas você é moreninha. Falar preta é feio”, “Arruma um marido branco para clarear a família...” Às vezes escuto pessoas dizerem: “Vocês negros é que vêem racismo em tudo”. Hoje ao ouvir esse tipo de comentário respondo com a maior naturalidade: Sim, Eu que vejo racismo em tudo, afinal sou eu que sofro racismo todo o dia quando saio na rua, quando entro numa loja e a vendedora gruda em mim, quando vou a um salão qualquer e escuto a cabeleireira dizer que vai “dar um jeito no meu cabelo” como se meu cabelo já não fosse ajeitado com jeito crespo dele.
Enquanto mulher preta eu jamais poderei deixar de militar e debater sobre o racismo, pois esse baterá na minha porta todas as manhas. Uma vez que saímos da caverna, que percebemos que a imagem projetada no fundo da caverna não era a realidade verdadeira, estamos condenados a dor da indignação, a revoltar-nos com as desigualdades dos nossos irmãos e irmãs, a lutarmos em nome de tantos outros/as que lutaram no passado.
Ser preto ou preta é descobrir sua historia, entender a lutas e as injustiças do passado, reafirmar sua identidade no presente, visando o futuro das novas gerações que muito ainda terão que lutar.